quarta-feira, 30 de abril de 2008

O menino e a pipa




Chovia um pouco, mas o que era mais visível era a neblina densa e fria daquela manhã. Era uma cortina de fumaça que fechava a passagem para o sol, conservando somente aquela languidez de uma manhã de outono. Era sábado, as ruas estavam desertas. Nenhum carro deslizando pela superfície úmida do asfalto, nenhuma voz ecoando pelas ruas. A cidade estava dormindo ainda o sono dos justos.

João acordou depressa. Olhou para aquele dia embaçado, sem luz e ficou desapontado. Queria estrear sua pipa nova que ganhou do avô, sair correndo pela grama do parque e exibir o seu presente para os seus amigos. Mas ele não desistiu, achava que aquela neblina não duraria muito, que era só o tempo de todos acordarem e a vida começaria de novo. Então colocou sua bermuda, uma camiseta e ficou esperando o sol aparecer com o rosto colado na janela do seu quarto.

Os passarinhos não cantavam, os cachorros de rua estavam dormindo debaixo dos bancos da praça. O silêncio tomava conta de toda a cidade. O barulho característico do progresso não existia mais. O ronco dos motores dos carros estavam calados naquela manhã, e João queria entender a razão de tudo isso. Para ele era como se tudo morresse, que a cidade se tornara uma cidade fantasma - igual às dos filmes de faroeste. Andou pela casa e todos dormiam. Joana, a empregada e sua babá, não havia chegado ainda. Estava com fome e ninguém para fazer o café da manhã. "Vou pedir para a mamãe despedir Joana!" - pensava ele.

Ficou ainda mais alguns minutos olhando pela janela, mas nada do sol aparecer. Olhava para sua pipa com um olhar distante. Não podia deixar que uma simples neblina estragasse seus planos. Foi até a cozinha, abriu a geladeira e pegou o doce-de-leite. Fez um sanduíche e colocou em sua mochila. Também levaria para a viagem uma garrafinha com leite. Ao sair olhou para sua casa com um olhar de quem não voltaria mais. Era sua despedida, seu adeus. Um adeus ainda que prematuro e breve, mas para ele era um adeus.

Subia a rua com uma certeza incomparável. Enfrentava a neblina, como alguém enfrenta um inimigo. Olhava ainda para as casas, com a esperança de encontrar vida. Mas não precisava mais de ninguém. Tinha em sua bolsa mantimentos e sua pipa que lhe faria companhia. Após subir a rua, parou um pouco para descansar. O parque já estava a sua frente, vazio assim como toda a rua. Pegou sua pipa - ainda que não tivesse vento nenhum - e tentou empiná-la. Mesmo sabendo que as condições não lhe favoreciam, não desistiu.

O sol antes tímido, era como se despertasse e abrisse a cortina de névoa que cobria toda a cidade. Ainda assim João não conseguia fazer sua pipa voar. Mas todas essas tentativas eram como mágica. Era como se fizesse aquela cortina de névoa abrir, para que o sol aparecesse e a vida pudesse acordar daquele sono contagiante. Os cães - que antes dormiam debaixo dos bancos - já estavam latindo pelas ruas, pedindo para que o dono do açougue os desse o petisco matinal. O sol começara a tomar seu lugar de direito, aquecendo a cidade. João olhava fixo para o céu - por um minuto desistira de empinar sua pipa. Subitamente as ruas começaram a se movimentar. A cidade começava a ficar barulhenta, os carros acordaram e já estavam percorrendo as ruas com aquela pressa característica.

A pipa que estava em suas mãos começou a se movimentar levemente. O vento também despertava. Em poucos minutos lá ia sua pipa, voando alto, mais alto que qualquer passarinho, ganhando os céus e abrindo caminho para sua liberdade. O parque começava a encher de crianças, as ruas já estavam cheias. A neblina, que antes cobria a cidade com sua mortalha,
desapareceu. Agora havia vida.